Lição de Desigualdade

Certo dia, uma senhora "do bem" (meia idade, classe média) adentra ao supermercado anexado ao shopping center da cidade, ou melhor, do bairro. (antro do consumo: cenário ideal para uma ilustração social)

Enquanto assiste aos comerciais pela televisão instalada para entreter os consumidores com incentivos de "sejam felizes", espera irritada na fila do caixa. (filas: todos estão sujeitos e acostumados a elas: a pé, de carro, até mesmo de avião)

Ao chegar ao caixa, percebe que um produto está vencido (é preciso que os produtos tenham curto prazo de validade para que a economia rode) e, revoltada, reclama para a pobre atendente que, também estressada, aciona um apoio.

Uma espécie de sirene começa a piscar.

Enquanto o apoio não vem, os itens vão sendo lançado no sistema. ("o sistema": presente em praticamente todas as nossas ações no dia; espécie de algo imutável ao qual – dizem – devemos nos adaptar, pouco importando que seja criado e administrado por outros humanos)

De repente, a pobre atendente – ou melhor, a caixa registradora – apresenta na tela um preço divergente: a prateleira marcava R$ 3,00, mas a tela do sistema mostra R$ 3,20.

O que vale é o que aparece na tela, senhora – afirma a pobre atendente.

É a gota d'água para a senhora do bem se exaltar e começar a reclamar em alto e bom som sobre o serviço prestado ali. Afinal, é uma vergonha – esbraveja – trabalhar tanto, pagar tão caro e não ter seus direitos garantidos.

Neste momento, o apoio acionado pela sirene chega e pede à senhora que se acalme e deixe os demais consumidores passarem enquanto o gerente é acionado. No entanto, a senhora do bem – que, afinal, está nos "seus" direitos – diz que não: ninguém vai passar enquanto o caso dela não for resolvido.

As demais pessoas do bem que estão na fila começam a esboçar murmurações, mas sabem que fariam o mesmo se fossem elas as acometidas por tal barbárie.

Enquanto o gerente não vem, a televisão troca a felicidade dos comerciais por uma sentença de noticiário. Junto à foto tenebrosa, a notícia "vândalos atrapalham trânsito em mais uma noite violenta" preenche a tela.

A notícia parece ter um efeito analgésico e criar um vínculo tácito entre as pessoas do bem que estão na fila. Elas logo começam a trocar reclamações sobre os vândalos: os mais contidos dizem que lutar pelos direitos é preciso, desde que não atrapalhe a vida de ninguém; outros mais veementes dizem que é um absurdo tanto alvoroço por causa de centavos.

O filho de uma pessoa do bem pergunta se foi mesmo o tal de vândalo (ainda não sabe muito bem o que isso significa) que quebrou aquilo.

O bom pai, sempre atencioso, afirma: se apareceu na tela, então é verdade, filho.

O filho pergunta para ver se entendeu: o tal de vândalo é igual à senhora que está atrapalhando todo mundo para ser notada e ter seus direitos garantidos, não é?

O bom pai, sempre atencioso, afirma: não, filho, é diferente.

Ali, mais uma vez, o filho aprende com o bom pai um pouco sobre a sociedade em que vive: uma verdadeira lição de desigualdade. (não apenas de opiniões; mas principalmente de direitos)

Afinal, deve ter pensado o pai, nenhum manifestante "paga um serviço" como a senhora do bem; os impostos servem para qualquer outra coisa. (a televisão troca a notícia dos vândalos por uma chamada da Copa do Mundo)

Ou ainda: para que protestar com violência, atrapalhando os outros? Não há outra forma de reivindicar seus direitos? ('num rompante de violência, sentindo-se tacitamente apoiada pelas demais pessoas de bem, a senhora começa a jogar os produtos no chão e gritar contra a pobre atendente pela demora na solução de seu problema)

Coitada! Veja o que essa cidade obrigou a pobre senhora a fazer – observa o pai. (enquanto a sirene continua piscando)

O filho, outrora assustado, começa a se acostumar com tudo aquilo. Percebe que a violência exibida na televisão de fato existe na realidade, embora a realidade que ele está vivendo seja diferente da que ele está assistindo. (voltam os comerciais com incentivos de "sejam felizes")

É simples: então quer dizer que vândalo significa ser humano! – conclui o garoto. E sorri, satisfeito.

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